Explodindo a aquarela da consciência: prefácio de "Gume de gueixa", de Jandira Zanchi
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Como é bastante
sabido entre os conhecedores de poesia, Rimbaud, numa carta a Paul Demeny,
sugeriu que o poeta deveria se tornar uma espécie de vidente por meio de um
“longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos”[1]. Descontando as evidentes conotações
místicas do termo vidente (uma variante da concepção romântica
do poeta vate), podemos dizer que Rimbaud pensava numa poesia do
futuro, projetiva — o poeta como “antena da raça”, para citar a formulação de
Ezra Pound, que os conhecedores, mais uma vez, hão de reconhecer[2]. Abrindo-se para toda sorte de novas
experiências, vivendo intensamente, colhendo com os sentidos muito de tudo
(“todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura”), o poeta esgota os
caminhos previamente traçados, o campo mapeado do possível, até tocar, com a
ponta dos dedos, o véu do desconhecido e descortinar o futuro. Aonde quer que a
humanidade chegue um dia, o poeta já esteve lá e agora traz os
ecos de uma terra distante e obscura. Como bem disse o mestre Caeiro:
Sou o descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
O país estranho do
qual o poeta nos fala é, afinal de contas, o nosso próprio, apenas limpo da
pátina gordurosa da rotina, da mesmice, dos clichês. Contudo, não é preciso,
como Rimbaud pretendia, impor ao poeta um modo de vida. Não, caros leitores,
não é preciso que o poeta se entregue ao ópio, ao absinto, à cocaína; não é
preciso que experimente o sexo grupal, o sexo com cadáveres, com cavalos; que
seja amarrado, pendurado, furado, costurado ou quem sabe raptado por serafins;
nem mesmo é preciso que leve à boca qualquer imundície. Alguns poetas, imagino
eu, nunca choraram sozinhos num banheiro sujo. Não sei se é o caso de Jandira
Zanchi, a quem conheço somente das veredas do mundo virtual. Ocorre que, como
seus versos demonstram, a poesia não é o produto de um desregramento prévio;
ela é o próprio caminho, o processo pelo qual nossos sentidos alucinam e
passamos a enxergar as coisas sob uma nova luz e por inusitadas perspectivas.
Vejamos em “A cor do rio”:
Decapitava a noite
seu frio mármore
estremecido de gozo
Se me permitem uma
rápida tentativa de exegese, talvez querendo inserir, imprópria e
inadvertidamente, uma mísera moeda de sentido na solda perfeita entre som e
imagem[4], o “frio mármore estremecido de gozo” é o
rio com suas águas trêmulas, como parece sugerir o nome do poema. Ou talvez
seja a noite a decapitar-se a si mesma. O que sei eu? O fato é que o poema,
operando fora das figuras de linguagem ratificadas pela tradição e apostando na
ambiguidade e na indefinição sintática, força-nos a olhar para as coisas mais
corriqueiras com os olhos prenhes de estranheza. Aprendemos a desaprender as
coisas, com as pupilas dilatadas de perplexidade: “Não-entender, não-entender,
até se virar menino”, na lição de Guimarães Rosa.
Contudo, alguns
poemas de Zanchi se fecham no mais intransigente hermetismo, forçando-nos a
abdicar de qualquer anseio interpretativo, como em “Umbigo”:
fumava fumaças
de charutos rútilos
desejava desvios
de prantos e pratas
nádegas de defuntos
de charutos rútilos
desejava desvios
de prantos e pratas
nádegas de defuntos
esquálida e vibrante
essa face nódoa
amante do umbigo
essa face nódoa
amante do umbigo
fertilizadora de
silêncios.
A evidente estranheza
das imagens dispensa qualquer comentário. O poema não é um enigma, mas um
verdadeiro mistério; ele não quer ser entendido: apenas sentido, fruído — “O
mistério não cede/ ele sobe desce” (“Favorita”). E a corrosão do sentido
tem como consequência um desmantelamento do discurso, de modo que, não raro,
nexos sintáticos são preteridos em favor da livre associação de ideias ou
palavras, abolindo-se a pontuação. Em “Favorita”:
luz e dia sombra alta
a terra arde e ama
o Sol de seu príncipe
segue-se um terço
e partes.
a terra arde e ama
o Sol de seu príncipe
segue-se um terço
e partes.
Obviamente, estamos
diante de uma autora que se coloca em linha de continuidade com as
experimentações surrealistas que, desde certa vertente da poesia de Manuel
Bandeira, possui forte tradição no Brasil: Murilo Mendes, Jorge de Lima, os
integrantes da Geração de 45 etc. Entretanto, o que tais poetas não
compartilham com Jandira Zanchi é a dissolução da forma e do discurso, que faz
a sintaxe desesperar. Segundo as palavras da própria poetisa: “testemunho — sem
comover-me —/ a mutação da forma e sua desarmonia/ alegria exuberância tirania
de vida” (“Testemunho”). Mais correto, portanto, é filiá-la ao nonsense caboclo
de Manoel de Barros, à poesia xamânica de Roberto Piva e, para apostar numa
referência externa, ao surrealismo (des)construtivista do português Herberto
Hélder.
Mas é com Piva que
Zanchi comunga um importante aspecto de sua poesia: o erotismo. Não um erotismo
de uma carne que se faz verbo; não um erotismo que se depreende de um corpo
imaginado através das palavras, emerso ao nível do significado, plenamente
representado. Na realidade, o que temos aqui é uma sedução pela palavra (num
sentido em tudo diverso ao que tal expressão tem recebido ultimamente na selva
selvagem dos simpatizantes da literatura comercial[5]), pois, as palavras, trabalhadas em sua
dimensão material, no âmbito do significante, propiciam por si mesmas uma
experiência que captura a sensibilidade e instiga a imaginação. É o verbo que
se faz carne, mas, neste caso, uma carne embebida no gozo e destituída de
culpa:
quero a ímpia e colorida terra
outra vez nua nos orgasmos
de seus rios e mares
amada sede de seres
e sonhos. (grifos meus)
A poesia transfigura
a natureza, a realidade, tornando-a objeto de uma fruição sensualíssima, no
entanto, além disso, há a própria sonoridade da estrofe, seu ritmo, seus ecos,
suas aliterações, fazendo dos versos uma experiência inebriante, embalada no soçobro
do sentido:
Novilha na Rede...
antes que te voltes, Mulher,
a mão do bárbaro é novamente tua
beija-lhe em cada uma das três faces
o olho do centro
o amálgama do medo esquecido
em suas poeiras vagas vagabundas
de ilusões e cortejos
nua e na rua redime a forma e sua
discutível planificação de outras redes. (grifos meus)
antes que te voltes, Mulher,
a mão do bárbaro é novamente tua
beija-lhe em cada uma das três faces
o olho do centro
o amálgama do medo esquecido
em suas poeiras vagas vagabundas
de ilusões e cortejos
nua e na rua redime a forma e sua
discutível planificação de outras redes. (grifos meus)
As sugestões eróticas
do enunciado se fundem à volúpia das palavras na enunciação, formando uma
camada espessa de impressões sensoriais. O gozo não está somente no que se
entrevê nas frestas das palavras, no que se adivinha por detrás delas (pois o
detrás, algumas vezes, não existe); ele está também nas palavras elas mesmas,
em seu arranjo, no que contenham de sonoridade. Pleno gozo do signo: sedução
pelo significado e, sobretudo, pelo significante.
Nesse sentido — o de
uma poesia que, muitas vezes, despoja-se de qualquer lastro referencial para
melhor imprimir seu poder de sugestão — temos uma obra poética que não se quer
limitada pelas regras da verossimilhança ou pelas amarras do possível. Ela não
se pretende verdadeira, tampouco mente, pois seus critérios são outros. A voz
lírica diz: “conheço o luxo de ser nua e insofismável” (“Gume de
gueixa”) e assim é a poesia de Zanchi — despida de qualquer pretensão de
apreender conceitualmente a realidade, de emitir juízos e definições, ela se
apresenta em sua beleza pura, em seu esteticismo intoxicante, como a nos dizer:
com a beleza não se discute. A gueixa, cujo gume dá título ao livro, remete-nos
à hetaira Friné diante do Aéropago, absolvida de acusações caluniosas única e
exclusivamente por força de sua estonteante (e, por que não dizer,
“insofismável”?) nudez.
[1] O trecho citado está entre os
mais conhecidos da correspondência de Rimbaud reunida no volume Lettres
du voyant.
[2] POUND, Ezra. Abc da
Literatura. Tradução Augusto de Campos e José Paulo Paes. 2ª ed. São Paulo:
Cultrix, s.d., p. 77.
[3] PESSOA, Fernando. “O guardador de
rebanhos - XLVI”. In: Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, p. 73.
[4] Walter Benjamin comenta a
respeito dos primórdios do surrealismo: “A vida só parecia digna de ser vivida
quando se dissolvia a fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem
em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som
e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de
forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a
que chamamos ‘sentido’”. BENJAMIN, Walter. “O surrealismo: o último instantâneo
da inteligência europeia”. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo
Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 22.
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