Pisando nos astros, não tão distraído: resenha de "PARSONA", de Adriano Scandolara
Resenha originalmente publicada no Jornal Opção, 16/05/2017.
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Adriano Scandolara, poeta curitibano e tradutor, é autor de
um surpreendente livro de estreia, Lira
de lixo (Patuá, 2013). Quatro anos depois, vem a público seu segundo volume
de poesia, PARSONA (Kotter). Trata-se
de uma obra, digamos assim (com medo de espantar os leitores), “experimental”.
Scandolara apropria-se dos 35 sonetos da “Via Láctea” de Olavo Bilac — segunda
seção de Poesias —, desmembrando-os e
os reconfigurando em novos arranjos, que correspondem aos poemas do livro,
dividido em cinco partes. Temos, portanto, uma ambígua autoria em que os
significantes da poesia bilaquiana adquirem novos significados no contexto enunciativo
da nova obra. Ao final da parte quinta, encontramos a seguinte advertência:
BILAC
DISSE TUDO ISSO
BILAC NÃO DISSE NADA DISSO
Na parte primeira de
PARSONA (anagrama de “Parnaso”),
intitulada “tempo desvairado”, explica-nos o autor: “em que mutilo sem dó os
sonetos”. O que temos é uma fragmentação do discurso bilaquiano, restando —
como ruínas dos poemas originais — palavras pulverizadas ao longo da página,
rompendo-se com a ordem sintática. O novo significado emerge da utilização da
parataxe, isto é, da justaposição de morfemas, imprimindo um caráter constelar
ao conjunto (o que remete ao título da seção de Poesias dos quais os textos originais fazem parte). Em muitas das
peças aqui reunidas, a decorosa sensualidade (às vezes nem tanto) do lirismo da
“Via Láctea” converte-se numa caricatura debochada de si mesma devido à ênfase
que a montagem empresta à conotação erótica dos termos utilizados por Bilac.
Eis que o soneto XIX da “Via Láctea”...
Sai
a passeio, mal o dia nasce,
Bela, nas simples roupas vaporosas;
E mostra às rosas do jardim as rosas
Frescas e puras que possui na face.
Passa. E todo o jardim, por que ela passe,
Atavia-se. Há falas misteriosas
Pelas moitas, saudando-a respeitosas...
É como se uma sílfide passasse!
E a luz cerca-a, beijando-a. O vento é um choro
Curvam-se as flores trêmulas... O bando
Das aves todas vem saudá-la em coro...
E ela vai, dando ao sol o rosto brando,
Às aves dando o olhar, ao vento o louro
Cabelo, e às flores os sorrisos dando...
... transforma-se em:
passeio dia nasce
vaporosa
mostra as rosas
frescas que possui
Passa o jardim
atavia
pelas moitas
a sílfide
luz
beija vento
flor trêmula
em coro
ela
dando
dando
dando
O verbo no gerúndio
“dando”, reincidente no último quarteto do texto bilaquiano, adquire conotação
sexual, contaminando-se com a atmosfera de sensualidade explícita criada pela
ênfase nos aspectos eróticos do poema original. Por meio de uma montagem que
tem um quê de cubista, Scandolara cria uma versão pornô do soneto de Bilac.
Na parte segunda,
“ascende como se livre (em que o olho une estrelas e traça constelações)”, há
um “amálgama” entre os poemas da primeira parte, seguindo um plano previamente
estabelecido (que não convém esmiuçar aqui), o que resulta numa série de 28 novos poemas. Os morfemas
bilaquianos são articulados numa nova trama, gerando contextos semânticos
inéditos. Na parte terceira, “tortura de exílio e atritos vazada no eterno (em
que a força gravitacional elimina os espaços vazios)”, os amálgamas da seção
anterior são fundidos e reeditados, dois a dois, em novos poemas que já vão se
aproximando — às vezes imperfeitamente — da forma de um soneto tradicional, com
seus quatorze versos divididos em dois quartetos e dois tercetos, compondo
variações em torno do metro decassílabo. Para ficar num único exemplo:
hoje o livro o
passado talvez so-
-nhasse aos
raios em que céus em que
sombria
lembrança as estrelas trêmulas
infinita
escada moita flor noite
luares?
partindo e olhava degrau vives
trêmulo olhar
estas aquelas um
anjo a harpa
súplicas, feria das
estrelas
sombra corta umas vós
também ilusões
tua virgindade
de pudor a
armadura neve das
capelas um
bando de sombras meu
amor guardando
montanhas coral
vi olhar
celeste erguendo a alvura
neve cobre os
flancos desnudo seio
Começam a emergir,
do aparente caos combinatório, alguns vestígios de coesão e coerência textuais,
o que, em vez de atenuar, apenas reforça a impressão de estranhamento. O
insólito das imagens criadas e o jogo que alterna uma sugestão e a
desconstrução da ordem sintática dão um aspecto dadaísta ao conjunto, aliado,
no entanto, a uma lógica formal rigidamente construtivista, que se impõe por
meio do procedimento da montagem: o aleatório e o arbitrário se confundem e se
interpenetram.
Na parte quarta
“lixívia (em que damos uma olhada no que foi jogado fora)”, os fragmentos dos
sonetos de Bilac excluídos nas partes anteriores são reunidos em seis
parágrafos, formando um simulacro de prosa poética que lembra alguma coisa da
escrita automática surrealista (um efeito, mais uma vez, obtido por meio da
lógica construtivista da montagem). Já na parte quinta — e última — do livro,
“sagitário a* (enfim o cerne de todo esse trabalho sem sentido)”, forma-se o
derradeiro soneto do volume, tomando-se um verso de cada um dos poemas da parte
terceira. Não exponho o resultado aqui, que mereceria uma análise mais detida,
mas posso dizer que há uma estranha e surpreendente beleza lírica nele. Se
pensarmos no livro todo como um processo cujo resultado é o soneto final, então
a própria ideia de cinco “partes” é enganosa, pelo que sugere de estático e
estratificado. Mais preciso, talvez, fosse falar das cinco fases de um processo.
Ao final do livro,
temos um posfácio, “faça você também o seu próprio PARSONA”, no qual, parodiando
uma receita culinária, o autor explica, passo a passo, os procedimentos que
resultaram no volume. Repleto de autoironia, ele deve ser visto como um
componente fundamental do conjunto. Como dito anteriormente, há uma ambiguidade
na autoria do livro: por um lado, existe a impessoalidade dos poemas, que
apenas esboçam — em traços gerais e elípticos — o eu lírico dos sonetos
bilaquianos; por outro, há uma consciência autoral por trás de todo o processo,
atuando, por meio da montagem, como uma espécie de editor. Nos subtítulos de
cada parte, em que há uma sintética explicação do procedimento que lhe deu
origem, tal consciência se materializa como voz poética; é essa mesma voz que
se faz ouvir no posfácio. Da tensão entre o discurso bilaquiano, esquartejado e
reconstruído, e a consciência composicional que lhe empresta novos
significados, constitui-se a autoria do volume.
É possível definir o
princípio formal que rege a confecção de PARSONA
como uma apropriação irônico-alegórica dos sonetos da “Via Láctea”. Em Origens do drama barroco alemão, Walter
Benjamin aponta como, no período barroco, a alegoria — ao contrário do símbolo,
entendido pela estética romântica como a manifestação sensível da Ideia —
representa um modo aproximativo, imperfeito, de ilustrar um conteúdo transcendente,
que escapa à expressão humana, daí seu caráter cumulativo: quanto mais
alegorias, maior a ilusão de que seja possível emprestar forma comunicável ao
inefável (o que, porém, apenas aumenta o aspecto fragmentário do conjunto). A
alegoria barroca, assim, é um caco, um fragmento, uma ruína de uma totalidade
semântica inexprimível.
Peter Bürger, em Teoria da vanguarda, utiliza-se da
descrição benjaminiana da alegoria para explicar a natureza da obra de arte
vanguardista por oposição à obra de arte clássica. Enquanto esta seria “orgânica”,
com seus elementos articulando-se num todo coerente e inteligível, remetendo a
um significado definido, aquela teria um aspecto compósito, fragmentado. Na
arte alegórica, o material utilizado não possui um significado inerente,
cabendo ao artista emprestar-lhe arbitrariamente um significado qualquer. Dessa
maneira, podemos compreender os poemas de PARSONA
como versões alegóricas dos sonetos bilaquianos, em que fragmentos dos originais
têm seu significado subvertido, por isso podemos caracterizá-las como irônicas
(lembrando que ironia é uma figura de linguagem em que se diz uma coisa querendo
sugerir algo diverso). Nos arranjos poéticos de Scandolara, criam-se contextos inéditos
nos quais as palavras de Bilac adquirem uma carga semântica outra, gerando, não
raro, efeito humorístico por conta de associações imprevistas de vocábulos.
Há tempos não se via
na poesia brasileira uma obra tão provocativa. Sua primeira provocação, a mais
óbvia, é em relação à solenidade que a poesia parnasiana (juntamente com seus
admiradores) arrogava a si mesma. Scandolara dessacraliza o lirismo cósmico da
“Via Láctea” bilaquiana, tomando seus sonetos como um brinquedo de montar e
dando às suas palavras significados nada sublimes, ou seja: pode-se dizer que o
autor destrói a “aura” (conceito também benjaminiano) dessa poesia. Até aí,
nada demais, pois o modernismo de 1922 e seus continuadores já destruíram o
prestígio do parnasianismo junto ao público. Tal provocação seria chutar
cachorro morto. O deboche implacável, porém, não deixa de ser uma forma de
levar a sério e, paradoxalmente, a derrisão irônica de Scandolara contra os
sonetos de Bilac consiste também num resgate, numa revitalização. Assim, a
provocação se volta contra o establishment
literário brasileiro, que prescreve uma profilática distância dos restos
mortais parnasianos.
A maior provocação
do livro, porém, expressa-se por meio da ironia. A todo momento, o autor
rebaixa o próprio trabalho, definindo-o, por exemplo, como “sem sentido”. No
posfácio, esse recurso é explicitado na instrução de número oito: “complete o
quadro com um prefácio e um posfácio, ambos de um tom cômico nervoso, o
primeiro mais assertivo e o segundo com um leve quê de autodepreciação”.
Entretanto, tal “autodepreciação” se reverte contra os procedimentos utilizados
na composição do livro e contra seu caráter experimental: “finja que os
resultados não são uma imitação muito tardia do concretismo”; “finja que os
resultados não são uma imitação tipo camelô da oulipo”; “não queira criar
carreira como poeta conceitual. você pode acabar tentando imprimir a internet”.
A voz autoral, portanto, acusa a frivolidade e a pouca originalidade de todo o
empreendimento.
Na verdade, o que
temos é uma denúncia irônica da convencionalização dos procedimentos das
vanguardas e, sobretudo, das neovanguardas, que, devidamente integrados ao
cânone, perderam seu potencial inovador e de crítica à literatura
institucionalizada. É isso o que Iumna Simon chama de “retradicionalização da
poesia”: “Retradicionalizar significa incorporar as tradições modernas,
traduzir o teor originalmente crítico delas em formas convencionais e
autorreferidas, mediante o trabalho de linguagem e sob o amparo do ‘rigor de
construção’, paradoxalmente assumidos como princípios capazes de preservar a
autonomia estética e o ofício do verso”. Assim, a poesia incorre num formalismo
em que os procedimentos formais — destituídos de qualquer dimensão crítica —
bastam por si mesmos e asseguram à obra um aspecto up-to-date. As experimentações com a linguagem verbal, um legado
concretista, tornaram-se carne de vaca e,
passando rapidamente os olhos sobre a maior parte do que hoje é chamado de
poesia experimental, constatamos variações intermináveis em torno dos mesmos
procedimentos, agora estabilizados pela tradição literária.
PARSONA, de Adriano Scandolara, desvela os impasses do experimentalismo
contemporâneo, assumindo-os criticamente. A voz autoral, fazendo uso da ironia,
obriga-nos a tomar um distanciamento reflexivo em relação ao processo criativo e
a seus resultados, por isso o posfácio é um componente essencial à compreensão
do conjunto. Percebemos o quanto de arbitrário há na empreitada, o que devemos
estender à produção poética atual, principalmente na vertente que encontra no make it new poundiano seu principal mandamento. Não quero sugerir que há em
Scandolara, como poderia ficar subtendido, uma intenção de se colocar à margem
de tais tendências, o que daria ao livro um caráter meramente paródico. Na
verdade, o autor se propõe a fazer poesia experimental a sério, mas sem ignorar
as contradições dessa proposta e as tomando como caminho de autorreflexão para
o discurso poético. Eis a última e mais consequente provocação do livro,
fazendo dele uma espécie de ouroboros autocrítico a devorar o próprio rabo.
Tiração de sarro com
a poesia parnasiana, PARSONA se
revela uma aguda reflexão crítica sobre os limites do experimentalismo
pós-moderno, convertido num formalismo que ecoa, de algum modo, o princípio da
arte pela arte daquela poesia (duas pontas soltas de nossa tradição literária
que o autor, engenhosamente, une). Se o trajeto de Scandolara em seu livro
aponta uma nova senda ou um beco sem saída à produção contemporânea, isso
apenas o tempo poderá dizer. O que se pode dizer com segurança é que não há
nada de inofensivo neste livro, que, a despeito de sua feição debochada,
demonstra um elevado grau de maturidade estética e confirma a posição de Adriano
Scandolara como um dos autores mais interessantes da novíssima geração.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013.
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac
Naify, 2008.
SCANDOLARA, Adriano. PARSONA. Curitiba: Kotter Editorial, 2016.
SIMON, Iumna. “Situação de sítio”. In:
PEDROSA, Celia; ALVES, Ida (orgs.). Subjetividades
em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro:
7Letras, 2008, pp. 133-47.
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